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A escrita na Internet

A primeira questão que se coloca para qualquer educador interessado na implementação de ensino baseado em Internet é inevitavelmente a questão pedagógica. O deslocamento do professor da situação imediata do ensino muda a natureza da interação entre professor/aluno/material pedagógico e esta mudança gera a necessidade de novas estratégias de ensino. Esta característica distingue o ensino baseado em Internet das situações de ensino presencial.

As estratégias, por sua vez, tendem a ser bastante diferenciadas se o material produzido para ensino tem por meta auto-instrução ou prevê algum tipo de interlocução entre professor e aluno, ou aluno/aluno. Ou seja, o tipo de material e tarefas que se adequam ao estudo independente, diferem daquele previstos para o ensino que utiliza canais de comunicação entre os sujeitos envolvidos na interação pedagógica. Ainda a este respeito temos que considerar se a comunicação prevista é totalmente assíncrona (como ilustra o estudo por correspondência). Um diferencial adicional a ser considerado, é o espaço que o curso oferecido abre ou deixa de abrir para a interação aluno/aluno, ou seja em que medida o ensino visado se caracteriza como mais ou menos colaborativo.

Quando o ensino se processa através de meios eletrônicos (rádio, televisão ou computador), a linguagem em si se coloca como uma segunda questão a ser considerada. Nestes casos, para que o ensino seja eficiente é fundamental que o designer/professor saiba explorar de forma adequada os recursos expressivos que facilitam a comunicação nos diferentes meios (por exemplo, som, imagem, escrita). No caso específico da comunicação mediada por computador, as questões de linguagem se tornam ainda mais fundamentais, já que este meio eletrônico faz uso de uma linguagem híbrida, que agrega a linguagem desenvolvida pelos outros meios de comunicação em massa (Braga & Busnardo, 1993) e também apresenta novos gêneros de texto, hipertextos fechados e abertos (Snyder, 1996), que demandam novas estratégias de produção e de leitura.

A escrita na Internet, como bem coloca Chartier (1997), nos induz a pensar como nossa concepção de texto está sendo alterada e como tal modificação carrega, desde o processo de sua criação, os vestígios dos usos e interpretações permitidos pelas formas que a precederam. Essa questão talvez ganhe maior visibilidade se refletirmos mais detalhadamente sobre como as novas tecnologias incorporam os antigos avanços tecnológicos e introduzem mudanças que promovem e demandam novos modos de interação com o texto e via o texto escrito. A escrita no meio cibernético, que é escrita de última geração, coloca questões que nos levam a repensar a relação fala e escrita e a considerar modos mistos e heterogêneos de construção. Essa reflexão nos obriga a rever antigas categorias que opõem de forma dicotômica o texto falado e o escrito, ou a cultura oral e a letrada.

A relação entre novas tecnologias e os modos de produção e recepção de texto escrito

A compreensão das características que particularizam o texto escrito em meios eletrônicos certamente demanda uma reflexão sobre as diferentes maneiras pelas quais, historicamente, os avanços tecnológicos promoveram alterações na estrutura lingüística e nos modos de interação via linguagem escrita privilegiados em diferentes épocas e contextos. Em outras palavras, é necessário entendermos, de uma forma mais aprofundada, as mudanças técnicas e lingüísticas que ancoraram a construção social de diferentes tipos de cultura: a oral, a escrita e a cibernética (Havellock, 1995; Lévy, 1997; Illich, 1995). Considerando as práticas de leitura, é possível percebermos uma evolução que vai desde a dependência total na modalidade oral, que caracterizava a recepção dos textos escritos mais antigos, até uma segunda fase intermediária na qual a recepção da escrita passa a se ancorar mais no aspecto visual do texto. Nesse momento a escrita passa a desenvolver características próprias, mas não houve, ao contrário do que propõem algumas teorias mais tradicionais, uma ruptura drástica entre as práticas orais e as escritas -- mesmo se considerarmos como referência de análise os grupos letrados. Estes grupos, embora tenham passado a depender cada vez mais da escrita nas práticas cotidianas, não excluíram dessas práticas o uso da modalidade oral. Na realidade, mesmo em contextos mais formais, o que ocorreu foi uma complexa integração onde textos orais e escritos passaram a conviver de uma forma complementar e muitas vezes mista. Finalmente o contexto cibernético não só permite que a escrita ocupe espaços antes reservados para as interações orais, como também viabiliza a existência de um novo tipo de texto, o hipertexto, que é híbrido na constituição dos fatos lingüísticos, ou seja, incorpora textos escritos e orais e diferentes recursos audio-visuais: fotografia, som e vídeo.

Tais mudanças ocorreram devido a uma série de inovações tecnológicas que foram sendo agregadas, mudando de forma gradativa não só o suporte da escrita como também o perfil lingüístico dessa escrita. Fazendo uma análise retrospectiva dos diferentes estágios de evolução pelos quais passou o suporte da escrita até chegar ao texto eletrônico, Chartier (1997) observa que inicialmente o texto escrito tinha como suporte o rolo, uma longa faixa de papiro ou pergaminho que o leitor precisava segurar com as duas mãos para poder desenrolar. Nesse tipo de suporte, o texto era construído em trechos divididos em colunas que ficavam visíveis à medida em que o rolo era desenrolado no sentido horizontal pelo leitor. A própria natureza do suporte impedia que o leitor pudesse ler e escrever simultaneamente. Essa possibilidade só passa a existir com o códex, um avanço tecnológico em termos de suporte. Não mais uma faixa contínua, o códex caracterizava-se por ser um objeto composto de uma série de folhas dobradas, um certo número de vezes, de modo a formar cadernos. Esses cadernos eram depois montados e costurados uns aos outros e protegidos por uma encadernação, um suporte mais semelhante ao livro que temos hoje. A invenção do códex permitiu que o texto fosse distribuído na superfície da página e localizado através de paginação, numerações, e índices. Na escrita cibernética, voltamos a ter a construção de um texto que se apresenta na tela como uma grande faixa que se expande no sentido vertical, mas cuja construção deixa de ser linear como era no rolo ou na escrita convencional: o hipertexto pressupõe uma expansão em rede. Esse novo tipo de texto incorpora elementos de navegação eletrônica que facilitam a localização de trechos escritos de uma forma muito mais eficiente do que aquela permitida pelo texto no papel. Como bem coloca Chartier, a transição de um tipo de suporte para outro coloca o leitor frente a um objeto novo que não só lhe permite novos tipos de interação e pensamento como também demanda técnicas de escrita e leitura até então inéditas. É interessante ressaltar que essas mudanças estão também atreladas a uma alteração na característica da linguagem escrita privilegiada por esses diferentes suportes.

Illich (1995), discutindo a história do texto, coloca que embora a invenção do alfabeto grego (técnica empregada para representar graficamente os sons da fala) tenha sido um grande avanço em relação aos outros sistemas de escritas até então existentes, por muito tempo a decodificação do registro alfabético não pôde ser feita apenas com emprego dos olhos. A ausência de espaçamento entre as palavras tornava praticamente impossível a leitura silenciosa. Na realidade, até o século VII, salvo algumas inscrições monumentais que adotavam a separação entre as palavras, os textos escritos caracterizavam-se por ser uma seqüência ininterrupta de letras. Não havia, portanto, outra forma de leitura que não fosse o treino da leitura em voz alta, na busca de verificar se a seqüência de letras emendadas faziam sentido. Segundo o autor, o espaço entre as palavras foram introduzidos no século VIII como um recurso didático para facilitar a aquisição de vocabulário pelos padres escoceses que tinham dificuldade de aprender latim. A introdução do espaçamento entre as palavras acabou, como um efeito colateral, afetando a prática de cópia dos manuscritos e favorecendo o desenvolvimento da cópia silenciosa. Até ser introduzida a segmentação entre as palavras, a reprodução dos manuscritos exigia que um monge ditasse o texto para vários copistas, ou que cada copista lesse o texto em voz alta e guardasse quantas palavras pudessem ser captadas pela sua memória auditiva para depois anotá-las enquanto ditava-as para si mesmo. O espaçamento entre as palavras tornou possível que a cópia fosse feita palavra por palavra guiada apenas pela inspeção visual. No entanto, apenas essa alteração no modo de escrever não foi suficiente para tornar o texto visível. Essa nova realidade só passou a existir a partir da convergência de dezenas de técnicas de diferentes origens -- árabes, gregas e algumas inéditas -- que conferiram ao texto uma forma substancialmente diferente:

Os capítulos podiam receber títulos e serem divididos em subtítulos. O capítulo e o verso podiam ser numerados; as citações podiam ser destacadas se sublinhadas por um traço de tinta de cor diferente; os parágrafos foram introduzidos e ocasionalmente, glossas sumariavam o assunto; as miniaturas tornaram-se menos ornamentais e mais ilustrativas. Graças a esses novos recursos, um sumário e um índice de assuntos em ordem alfabética podiam ser preparados, e referências de uma parte a outra podiam ser feitas dentro dos capítulos. O livro que antes só podia ser lido em sua totalidade, agora podia ser aberto ao acaso: a idéia da consulta adquiriu um novo sentido (Illich, 1995, 44-45).

Esse processo de ``visualização do texto'' contribuiu para que a escrita se impusesse como uma modalidade distinta com algumas características particulares, inéditas nos textos orais. Ou seja, o texto escrito, que antes era uma mera transcrição do texto oral, passa gradativamente a mudar sua natureza e optar por estruturas e modos de organização mais adequados para esse novo tipo de recepção visual e silenciosa. Essa tendência ganha maior projeção com a invenção da imprensa, em meados de 1450, já que as oficinas tipográficas, ao facilitarem o processo de reprodução de textos, permitiram não só uma maior circulação de textos escritos nas prática cotidianas, como também uma maior padronização das normas da escrita. No entanto, é importante ressaltar que mesmo o amplo acesso à escrita promovido pela imprensa não implicou em uma total dissociação entre as práticas orais e as letradas, mesmo se consideramos como parâmetro de referência os grupos letrados socialmente privilegiados. Como ilustra Chartier, até muito recentemente, ler em voz alta nos salões, nos cafés, nas sociedades literárias era uma forma de sociabilidade compartilhada muito comum. Marchuschi (1994), discutindo o processo de retextualização, nos mostra como os depoimentos incluídos nos processos jurídicos atuais envolvem uma complexa interação de textos orais e de textos escritos que foram construídos/retextualizados pelo juiz a partir de tais depoimentos Na realidade, se consideramos o processo jurídico como um todo é possível percebermos uma complexa interação entre os autos do processo que incluem, por um lado, textos escritos e registros de depoimentos transcritos e, por outro lado, práticas orais como a acusação e a defesa durante o júri. Um outro exemplo que também ilustra a composição mista de práticas orais e escritas que caracterizam inúmeras situações cotidianas dos grupos socialmente privilegiados, é a construção do próprio discurso acadêmico. Na situação acadêmica os alunos consultam textos escritos, discutem oralmente na sala de aula os textos lidos e produzem novos textos escritos a partir dessas leituras e discussões orais. Mesmo a aula ministrada pelo professor pode ser considerada uma prática oral ancorada em textos escritos que fundamentam as discussões conduzidas em sala de aula e promovem novas produções escritas nos diferentes modos de avaliação propostos.

Essa construção mista e híbrida de diferentes modalidades de expressão é uma característica também marcante nos usos de linguagem nos meios eletrônicos. Dois exemplos diferentes podem ilustrar como essa nova tecnologia está incorporando e modificando práticas lingüísticas já existentes: a interação nas salas de bate papo e a construção do texto eletrônico ou hipertexto. Como apontado acima, no primeiro caso observamos o uso em situações de diálogo em tempo real, até bem recentemente um tipo de interação apontado como o protótipo da modalidade oral. No segundo caso, observamos a construção de um novo tipo de texto que não só explora e expande os recursos expressivos desenvolvidos pela escrita, como também mescla de uma forma inovadora diferentes tipos de texto e linguagem.

A mescla de linguagens constitutiva do hipertexto

Para discutirmos as questões relativas à construção de hipertextos em rede, é importante salientar que o termo ``hipertexto'' tem sido utilizado na literatura para referir-se a diferentes tipos de texto, como bem indica a categorização proposta por Snyder (1996). Segundo a autora é possível detectarmos quatro tipos principais de hipertextos:

hypercards
-- cartões eletrônicos que agregam diferentes linguagens (escrita, áudio e vídeo) e se apresentam como um texto isolado.

CD-ROMS
-- que apresentam um certo número de textos relacionados através de links eletrônicos e que permitem apenas leitura.

hipertextos exploratórios
-- sistemas de distribuição de hipertextos como a WWW dentro dos quais uma vasta gama de textos e outros dados podem ser acessados simultaneamente por muitos usuários.

hipertextos abertos
-- que permitem aos usuários adicionarem textos ou novos links aos textos disponíveis em rede, possibilitando que esses assumam simultaneamente os papéis de leitor e produtor.

Esses diferentes tipos de hipertextos, na realidade, expandem possibilidades já exploradas pela escrita convencional, além de integrar em um único canal outros tipos de linguagem que coexistem na sociedade industrial moderna. Uma análise superficial já é suficiente para percebermos que, no sentido mais amplo, o texto escrito, principalmente o acadêmico, é estruturado como um hipertexto. Ou seja, o texto base faz referência a outros textos ou incorpora notas que acrescentam comentários feitos por outros autores. O avanço tecnológico não muda essa estrutura básica, apenas permite que o acesso a essas referências ou sub-textos seja feito de forma simplificada e agilizada. Isso permite que a remissão a textos dentro de um hipertexto ocorra de forma ilimitada, ou seja, um texto pode remeter a outro texto em um processo em rede que pode ser infindo.

A possibilidade e agilidade de acesso aos diferentes links favorece a construção de textos bases mais reduzidos. É possível que essa redução seja também motivada pelo stress visual causado pela tela do computador. Dadas essas condições o texto eletrônico não se constrói mais de uma forma linear e seqüencial, como o texto impresso, mas sim de uma forma multi-linear e multi-seqüencial. Retomando as colocações de Chartier, mencionadas anteriormente, esse novo objeto textual abre espaço para tipos novos de interação que demandam técnicas inéditas de produção e leitura. Ou seja, o espaço de interação criado a partir de cada tecnologia de escrita encoraja e permite certos tipos de pensamento e desencoraja outros (Snyder, 1996). Isso talvez fique mais evidente se considerarmos que na leitura do texto impresso, o leitor tem acesso a um todo, o qual pode ou não ser acessado de uma forma fragmentada. No hipertexto esse leitor tem ao seu dispor não mais um todo fechado, mas sim possíveis caminhos de navegação entre múltiplos textos. Considerando a produção textual, a escrita impressa pressupõe um produto que foi revisto, editado e amplamente trabalhado antes da cópia final que foi impressa. Essa característica não tipifica o hipertexto aberto. Nesse tipo específico de hipertexto a escritas é vista não mais como um produto, mas sim como um processo de construção dinâmico, uma característica até bem recentemente atribuída a produção da fala.

Considerando as características desse novo tipo de texto, os estudos recentes indicam que o hipertexto estimula o pensamento telegráfico, maleável, não linear e cooperativo. Ou seja, a diminuição da distância entre o autor e o leitor viabilizada pelo espaço cibernético demanda uma nova compreensão da autoridade textual. Mais especificamente, há um deslocamento da singularidade, consistência e fechamento e o eixo central passa a ser a multiplicidade e a comunidade (Snyder, 1996). Do ponto de vista lingüístico, a escrita no eletrônica traz para o primeiro plano a relação entre a fala e a escrita. É inviável considerarmos dicotomias rígidas entre essas duas modalidades, uma vez que o hipertexto se constrói de uma forma híbrida, incorporando não só essas modalidades, mas também as outras linguagens que os avanços tecnológicos colocaram a nossa disposição.


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Ivan Luiz Marques Ricarte 2001-03-16